Régimen “experimenta” com o orçamento estatal: As ambulâncias e a privatização de serviços públicos

Apesar das declarações oficiais contra a privatização, os fatos sugerem o contrário. A falta de transparência e a narrativa manipulada apenas reforçam a ideia de que o regime está adotando medidas que contrariam seu próprio discurso, mas que beneficiam novas "élites" conectadas ao poder.


O regime cubano anunciou o lançamento de um "projeto experimental" que introduz um novo esquema de gestão para o serviço de ambulâncias em Havana, com a incorporação de 15 ambulâncias equipadas com tecnologia especializada.

Um relatório do jornalista Bernardo Espinoza para o Noticiero Nacional de Televisión (NTV) destacou o acordo alcançado entre os ministérios de Transporte, Saúde Pública, autoridades do Partido Comunista de Cuba (PCC), o governo de Havana e a empresa mista MCV Comercial S.A.

O “projeto experimental” surgiu nas negociações da Feira Internacional de Transporte e Logística realizada em abril de 2024 na capital. Ao final do relatório, no qual Espinoza entrevistou autoridades e responsáveis pelo projeto, o jornalista oficial fez o seguinte comentário:

“O pagamento dos serviços à entidade mista proprietária dos equipamentos será assumido pelo Orçamento do Estado.”

Ou seja, os cubanos estão sendo testemunhas de uma privatização velada de serviços públicos essenciais, da qual nunca houve uma convocação pública, um edital de condições, e da qual não têm qualquer informação sobre o custo que isso representará para os cofres do Estado, que se sustentam de seus impostos e contribuições.

Também não há informações acessíveis sobre a empresa mista MCV Comercial S.A., sobre quem a compõe e dirige, com que capital foi formada, ou qual foi sua proposta para participar neste "projeto experimental" anunciado pelo regime comunista.

Todas essas dúvidas ficaram sintetizadas e registradas em um tweet recente do economista cubano Pedro Monreal, que criticou o acordo e apontou para a privatização encoberta de serviços públicos essenciais que o regime cubano está começando a implementar com seu famoso “pacote” de medidas econômicas para “corrigir distorções e reimpulsionar a economia”.

“Narrativa nebulosa sobre ‘experimento’ de ambulâncias. Não seria apenas ‘colaboração intersetorial’. Também parece abrir um business a investidores estrangeiros na gestão de serviços internos básicos de saúde pública”, apontou o especialista em sua publicação.

Além disso, contrastou a decisão com a narrativa oficial de um regime comunista que sempre defendeu sua “superioridade moral” sobre o capitalismo pelo livre acesso a serviços públicos como a Saúde e a Educação, custeados pelo orçamento do Estado e supostamente livres das imposições e condicionantes de uma lógica de mercado.

“Onde ficaria o elogio à suposta superioridade de um gigantesco setor estatal que declara sua incapacidade para possuir, operar e manter ambulâncias? O que impede o governo de envolver o capital privado nacional nesse tipo de ‘experimento’?”, perguntou Monreal.

A medida representa uma aparente contradição com a postura historicamente defendida pelo regime, que manteve a primazia da empresa estatal socialista sobre a privada e se manifestou em múltiplas ocasiões contra qualquer processo de privatização, motivo pelo qual despertou uma onda de críticas nas redes sociais.

Contradições do discurso oficial

Ao longo dos anos, figuras do governo como o primeiro-ministro Manuel Marrero Cruz e o mandatário Miguel Díaz-Canel têm reiterado que a privatização não é o caminho para Cuba, defendendo o modelo socialista de gestão centralizada.

Em uma reunião do Conselho de Ministros realizada em dezembro de 2019, Díaz-Canel assegurou que em 2020 seriam “retirados os obstáculos para potencializar a empresa estatal”, que seriam implementadas “todas as medidas necessárias para liberar as forças produtivas”, mas que nada disso poderia ser confundido “com privatização, pois esse não é o nosso caminho”.

Por sua vez, Marrero declarou recentemente que "as empresas estatais não vão deixar de existir" e que o governo tem a responsabilidade de fortalecê-las, enquanto Díaz-Canel insistiu que as medidas econômicas adotadas buscam preservar o modelo socialista, rejeitando as críticas sobre um suposto processo de desmantelamento do setor público.

Deixamos que se deteriorassem, sob a desculpa de que há poucos recursos, e apesar de todas as políticas que aprovamos de autogestão. Uma estratégia intencional para depois justificar a privatização”, disse Marrero Cruz em junho de 2024 ao falar sobre as deficiências das empresas estatais.

No entanto, o “projeto experimental” das ambulâncias parece contradizer todas essas declarações e levanta várias perguntas sobre a verdadeira natureza e alcance dessa privatização disfarçada empreendida pelo regime cubano de forma opaca.

Apesar da magnitude do projeto, não foram oferecidos detalhes claros sobre os custos do contrato, a duração do acordo nem as condições específicas da participação privada no setor de saúde pública. A falta de informações e a narrativa oficial pouco precisa têm alimentado o ceticismo entre a população e os especialistas.

A falta de transparência não é um problema novo na gestão pública cubana. O governo tem tratado com hermetismo questões chave como a privatização de locais em Havana ou a gestão de serviços necrológicos em Santiago de Cuba. Em 2023, o governo negou a privatização desses serviços, apesar das evidências de que entidades privadas haviam assumido o controle operacional.

Impacto na população

A decisão de destinar recursos estatais à empresa mista MCV Comercial S.A. gera dúvidas sobre as prioridades do governo e seu compromisso com a eficiência dos gastos públicos.

Desde a perspectiva da cidadania, a implementação deste modelo de gestão levanta questionamentos sobre a equidade e o acesso aos serviços de saúde. Não se sabe se essa colaboração implicará a eventual introdução de tarifas ou pagamentos adicionais por parte dos cidadãos, ou se o “projeto experimental” será implantado em iguais condições em todas as áreas de saúde do país.

“Nossa proposta é iniciar este primeiro projeto com as 15 primeiras ambulâncias e, à medida que o ano avance, iremos planejar a ampliação deste [projeto], bem como a criação em outras províncias, na própria infraestrutura da empresa mista, para fornecer o serviço às outras províncias”, assegurou ao NTV o ministro dos Transportes, Eduardo Rodríguez Dávila, que defendeu a necessidade de expandir este modelo, pois atualmente “os serviços de saúde, às vezes, não são tão eficientes como deveriam ser”.

“Em termos práticos, buscamos um esquema em que o Transporte se ocupará da ambulância e do motorista, a Saúde Pública disponibiliza toda a equipe médica, e entre os dois garantimos que esse serviço tenha qualidade. Os veículos serão da empresa mista MCV Comercial S.A., que também será responsável pela sua exploração e manutenção”, acrescentou.

Privatização encoberta

Apesar das afirmações oficiais de que a medida não implica privatização, a falta de clareza sobre os termos da participação da empresa mista na gestão das ambulâncias continua a gerar desconfiança entre os especialistas e a população.

A ausência de um marco regulatório transparente e a recusa do governo em reconhecer publicamente a possibilidade de uma mudança estrutural na gestão dos serviços públicos alimentam a percepção de que está sendo implementada uma privatização encoberta.

A implementação deste novo esquema de gestão de ambulâncias representa um ponto de inflexão na política de serviços públicos defendida pelo regime cubano durante mais de 60 anos.

Apesar das declarações do governo sobre a “continuidade” em oposição à privatização, os fatos sugerem o contrário. A falta de transparência, a narrativa manipulada e a ausência de números concretos sobre o projeto apenas reforçam a ideia de que o regime está adotando medidas que contradizem seu próprio discurso... e a suspeita de que novas “elites” conectadas ao poder e à tomada de decisões do regime sairão beneficiadas com essa privatização disfarçada.

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Iván León

Licenciado em jornalismo. Mestrado em Diplomacia e Relações Internacionais pela Escola Diplomática de Madri. Mestrado em Relações Internacionais e Integração Europeia pela UAB.