A publicação nas redes sociais e em veículos independentes sobre a promulgação do Decreto 110/2024, que estabelece “Regulamentações para o controle e uso eficiente dos Portadores Energéticos e das Fontes Renováveis de Energia”, gerou uma forte reação das autoridades e da mídia oficialista do regime cubano.
A inclusão na norma de um “regime especial de contingência elétrica” (Capítulo VI, Seção Primeira), que estabelece o procedimento das autoridades e atores econômicos em caso de declaração e aviso do referido regime, gerou preocupação na população devido à redação do Artigo 40.1, que prevê a possibilidade de – em caso de necessidade – "afetar o serviço elétrico de forma planejada e contínua por mais de setenta e duas [72] horas".
O recente colapso total do Sistema Electroenergético Nacional (SEN) que os cubanos enfrentaram, resultando em um apagão que durou mais de 72 horas em grande escala em todo o território, influenciou a percepção e a compreensão da norma estabelecida pelo regime cubano, despertando o temor na população de que o Decreto venha a “oficializar” um capítulo ainda mais sombrio na crise energética.
De imediato, o aparato midiático do regime cubano saiu a “desmentir” as informações publicadas na imprensa independente e nas redes sociais, alarmados com a avalanche de comentários de cidadãos indignados e desesperados.
“É falso que exista a previsão de um apagão total em Cuba por 72 horas. Todos os dias, a Revista Buenos Días do Canal Caribe e a rádio cubana informam sobre a real afetacão devido ao déficit nas capacidades de geração. NÃO É VERDADE QUE SE PREVEJA UM APAGÃO TOTAL POR 72 HORAS”, esclareceu nas redes sociais a União Elétrica de Cuba (UNE).
No entanto, uma análise do Decreto 110/2024 mostra que, embora a normativa esteja ostensivamente direcionada aos “atores econômicos estatais e não estatais”, seu conteúdo e as medidas descritas demonstram que a população em geral também será afetada.
Um marco jurídico para a crise energética
O Decreto 110 regulamenta como são geridos os recursos energéticos em cenários críticos. Em particular, o Capítulo VI detalha os passos necessários para declarar e executar um estado de emergência diante da contingência de que “o SEN não consiga atender à demanda do sistema com a capacidade de geração”.
O artigo em questão, o 40.1, diz textualmente: “O ministro de Energia e Minas propõe ao Conselho de Ministros o regime especial de contingência elétrica quando o Sistema Electroenergético Nacional não consegue satisfazer a demanda do sistema com a capacidade de geração, sendo necessário afetar o serviço elétrico de forma planejada e sustentada por mais de setenta e duas horas.”
Segundo este artigo, a declaração do “regime de contingência elétrica” é acionada quando o SEN não consegue atender à demanda por mais de 72 horas, obrigando à implementação de restrições planejadas e sustentadas no fornecimento de energia elétrica.
Embora a abordagem inicial pareça delimitar um âmbito de aplicação que abrange empresas e entidades econômicas estatais e não estatais, a realidade descrita no decreto e em seus artigos evidencia que as consequências dessas medidas inevitavelmente impactarão os lares cubanos.
Implicações para a população geral
O simples fato de que a norma indique um modo de atuação das autoridades diante da possibilidade de que seja “necessário afetar o serviço elétrico de forma planejada e sustentada por mais de setenta e duas horas” ressalta a evidência de que essa possibilidade pode se concretizar na realidade, como já experimentaram os cubanos.
No entanto, é altamente improvável que um regime de contingência elétrica possa ser aplicado exclusivamente aos agentes econômicos sem afetar diretamente a população em geral. Vejamos por quê:
Impossibilidade de desvincular atores econômicos e população em um regime de contingência:
1. Interdependência entre os agentes econômicos e os serviços à população:
- Os atores econômicos estatais e não estatais estão intrinsecamente ligados ao bem-estar da população. Por exemplo:
- Os sistemas de refrigeração afetados em entidades econômicas incluem câmaras que conservam alimentos e medicamentos, essenciais para o consumo doméstico e a saúde pública.
- A paralisação das bombagens pode impactar o fornecimento de água potável, um serviço básico para os lares.
- Reduções na iluminação pública afetam a segurança nas ruas e comunidades, impactando diretamente a vida cotidiana.
2. Prioridades estratégicas que excluem o setor residencial:
- A priorização de setores como o turismo, a saúde e a produção de alimentos pode reduzir ainda mais a eletricidade disponível para o consumo doméstico, aumentando a frequência e a duração dos apagões nas casas.
3. Impacto indireto das medidas:
- Os ajustes trabalhistas e a redistribuição de horários entre os agentes econômicos também afetam trabalhadores que, na sua maioria, são cidadãos. Mudanças em suas rotinas laborais têm um impacto no funcionamento geral da sociedade.
Razão da comunicação em massa para a população
A orientação para que a UNE mantenha a população informada através dos meios de comunicação de massa (Artigo 40.5) sugere uma expectativa de impacto na população, embora o decreto não declare isso de forma explícita.
Isso pode ser interpretado de duas perspectivas:
- Reconhecimento implícito do impacto generalizado: Informar a população por meio de meios de comunicação em massa confirma que as medidas não estão restritas ao âmbito empresarial. Se a população não estivesse envolvida, a comunicação poderia se limitar aos agentes econômicos por meio de canais diretos.
- Controle social e manejo de expectativas: Informar publicamente sobre as medidas busca evitar surpresas e gerenciar as reações da população. Em um contexto de crise, o regime pretende manter a percepção de transparência e minimizar as tensões sociais ao explicar as razões das afetações.
Em um contexto de geração insuficiente e um SEN obsoleto, o déficit energético não pode ser gerido sem afetar o consumo residencial. Por isso, embora não sejam estabelecidas medidas diretas para os lares, estes sofrem as consequências indiretas.
Conclusão: Um decreto que afeta a todos
O Decreto 110/2024 exemplifica como uma regulamentação voltada para os agentes econômicos tem um impacto inevitável na população em geral.
Ao priorizar setores estratégicos e centralizar a tomada de decisões, o governo cubano busca mitigar uma crise energética sem precedentes.
No entanto, as medidas descritas e a comunicação em massa necessária refletem que os lares também serão protagonistas dessa contingência, enfrentando apagões, limitações nos serviços básicos e novas tensões em sua vida cotidiana.
Portanto, o decreto mistura elementos de controle técnico com uma narrativa política para gerenciar tanto a crise quanto seu impacto social.
Em última instância, este decreto não apenas regula uma crise energética, mas redefine as condições de vida de todos os cubanos, evidenciando as limitações do sistema elétrico e as profundas interconexões entre economia e sociedade.
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